No último episódio protagonizado por Cássia Kis, a atriz decidiu intervir em um supermercado carioca ao tentar, segundo relatos e um vídeo que viralizou nas redes, exigir que uma jovem de biquíni fosse retirada do estabelecimento. Em qualquer outro lugar do mundo, essa cena poderia parecer justificável. Mas no Rio de Janeiro, berço da liberdade dos corpos, isso soa como um ato de desconhecimento da história e da identidade da cidade.
Andar de biquíni, sunga ou sandálias de dedo pelas ruas e mercados faz parte do cotidiano carioca. É um símbolo da fusão entre a praia e a cidade, uma característica que o escritor e jornalista Edney Silvestre tão bem destacou em suas crônicas. Ele descreve, em uma das suas crônicas passadas, como o Rio abraça essa estética natural dos corpos, como se cada espaço urbano fosse uma extensão do mar. Esse traço cultural, tão próprio da capital fluminense, é o que confere ao Rio uma identidade única, libertária e despojada.
O que move Cássia Kis a confrontar uma prática tão comum no Rio? Talvez seja a amargura. Nos últimos anos, a atriz — que já foi reverenciada por performances memoráveis na televisão brasileira — tornou-se uma figura marcada por atitudes controversas e discursos que flertam com o autoritarismo. Seu comportamento já causou atritos em produções da TV Globo, incluindo problemas nos bastidores da novela “Travessia”, de Glória Perez.
Além disso, Cássia Kis enfrenta atualmente um processo por homofobia na Justiça Federal. Em 2022, durante uma entrevista à jornalista Leda Nagle, a atriz fez declarações consideradas preconceituosas contra pessoas transexuais, afirmando que a “ideologia de gênero” busca destruir a família. Essa postura resultou em uma ação civil pública movida pela Articulação Nacional dos Transgêneros (Antra) e pelo ator José de Abreu, que foi aceita pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) em outubro de 2024. Caso seja condenada, Cássia Kis poderá ser obrigada a pagar uma multa de até R$ 1 milhão.
Essa trajetória recente é lamentável. Em vez de ser lembrada por sua excelência artística, Cássia Kis tem se tornado pauta constante por atos que promovem a intolerância. Suas intervenções públicas, que deveriam ecoar sabedoria e humanidade, acabam revelando uma militância extremista desproporcional, que ignora a realidade e as nuances do país que ela habita.
O Rio de Janeiro não é uma cidade que tolere censuras. Ao longo da sua história, a capital carioca foi palco de movimentos que celebram a liberdade — nos corpos, nas palavras e nas atitudes. Quem não compreende essa essência está, na verdade, negando a alma do lugar.
A comparação inevitável que surge é com Odete Roitman, a vilã inesquecível de Vale Tudo, interpretada por Beatriz Segall. Talvez a Globo tenha perdido sua maior chance na trama. Odete personificava a intolerância e o preconceito, exatamente os traços que hoje vemos em Cássia Kis. Ironicamente, a Globo perdeu uma grande oportunidade ao não escalá-la para o papel.
A vida real, porém, não precisa imitar a ficção. Ainda há tempo para que Cássia Kis, como atriz e cidadã, repense suas atitudes e recupere sua grandeza. Ser pauta por seu trabalho primoroso é infinitamente mais digno do que ser notícia por atos de repressão.
Mas, por ora, resta o lamento: o que poderia ser um retorno ao palco da admiração tornou-se, infelizmente, mais um capítulo da decadência de uma artista que escolheu protagonizar a vergonha.