
A Páscoa amanheceu com um certo peso nas redes sociais. Entre ovos, mensagens de renascimento e lembranças de fé, circulavam com força imagens do ex-presidente Jair Bolsonaro deitado em uma cama de hospital, exibindo suas cicatrizes como quem apresenta troféus. Fotos cuidadosamente registradas, com enquadramentos que sugerem vulnerabilidade, resistência e martírio. Nada foi deixado ao acaso — nem o dia, nem o tom. E tudo isso é exatamente o problema.
Não se trata de ser contra ou a favor de Bolsonaro. A crítica aqui não é política no seu eixo tradicional, mas simbólica. Num domingo reservado à reflexão sobre sacrifício e renovação espiritual, fomos todos arrastados para dentro de uma narrativa que invoca a figura do “sofredor injustiçado”, como se as dores de um corpo fossem o argumento final de qualquer debate. Houve cálculo. Houve intenção. E houve uma certeza: ninguém seria poupado de ver.
As redes sociais, esse território já tão saturado de extremos, não precisavam ser atravessadas por mais uma cena encenada com ares de redenção. Não porque cicatrizes não sejam reais ou dolorosas, mas porque há uma diferença entre compartilhar a dor e explorar sua imagem. Numa sociedade cansada, uma cena como essa imposta à força nos olhos em pleno domingo de Páscoa transforma sofrimento em marketing, espiritualidade em campanha, corpo em palco.
A exposição não é apenas sobre mostrar uma ferida, mas sobre construir uma narrativa de ressurreição política — não por ideias, mas por impacto visual. O corpo aparece como instrumento de convencimento, enquanto o tempo litúrgico da Páscoa é sequestrado para servir a um roteiro milimetricamente elaborado. Em lugar de silêncio e contemplação, recebemos uma mensagem ruidosa, com estética de redenção e pretensões messiânicas.
O que mais incomoda, no entanto, é a sensação de que perdemos o direito à escolha. De que fomos coagidos, entre uma colher de bacalhau e uma mensagem da avó no grupo da família, a participar de um espetáculo que não pedimos para ver. Não houve aviso, não houve contexto — só a imagem, brutal e estratégica, nos olhando de volta. Quando tudo é sobre imagem, tudo vira performance. E quando tudo vira performance, a fé vira cenário.
No fim das contas, o incômodo não está nas cicatrizes, mas no uso que se faz delas. Porque há momentos em que o silêncio fala mais alto. E a Páscoa, para muitos, é justamente esse momento. A escolha de atravessar esse dia com um gesto tão ruidoso não foi uma provocação política. Foi um gesto de ocupação simbólica. E nós, todos nós, fomos plateia involuntária.