Alessandro Lo-Bianco

Taís Araújo levanta reflexão sobre o público em Vale Tudo

Por que o Brasil gosta de vilãs como Odete? O que isso revela, além do tom cômico entregue à personagem pela autora?

Taís Araujo como Raquel em 'Vale Tudo'
Foto: Foto: Globo/ Fábio Rocha
Taís Araujo como Raquel em 'Vale Tudo'


Taís Araújo levantou uma questão incômoda, que quase reverberou como tapa de luva em uma sociedade que, há décadas, ri e idolatra figuras que representam o que há de mais perverso nas relações humanas. Em entrevista recente, a atriz demonstrou espanto com o pedestal em que foi colocada Odete Roitman, a vilã de “Vale Tudo” que, embora fictícia, é lembrada com uma reverência quase religiosa por parte do público. O desconforto de Taís é um convite urgente à reflexão: por que celebramos tanto aquilo que nos fere?

Não se trata de não reconhecer a força dramática das grandes vilãs da teledramaturgia. Odete Roitman, vivida com maestria por Beatriz Segall na primeira verão foi um marco cultural. Mas o fascínio que o brasileiro nutre por figuras cruéis e autoritárias não se esgota na estética da ficção. Há, nesse encantamento, um traço psíquico profundo, de quem transfere ao outro o desejo inconsciente de dizer o indizível, de transgredir sem culpa, de encarnar o poder absoluto, ainda que pela via da opressão. Vilãs como Odete fazem o “trabalho sujo” por nós, verbalizando preconceitos que, no íntimo, muitos não se autorizam a assumir fora dos palcos da 'comédia'. 


A política nos oferece ecos assustadoramente parecidos. Não são poucos os exemplos de figuras públicas adoradas por sua brutalidade verbal, por sua capacidade de “falar verdades” mesmo que isso custe a dignidade alheia. Essa transferência simbólica revela a sociedade que projeta no líder ou na vilã a mãe severa, onisciente, que supostamente sabe o que é melhor, mesmo quando machuca. Como na novela, a violência é justificada pela força de quem a exerce. E a sociedade assiste, cúmplice e fascinada.

Essa inversão ética, onde o opressor é admirado e a vítima ridicularizada, denuncia também o esvaziamento da empatia como valor coletivo além do esvaziamento do roteiro proporcionado pela Manuela Dias. O riso diante da maldade estilizada não é inocente; ele molda imaginários, reforça estruturas. Celebrar Odete Roitman não é só aplaudir uma atuação brilhante, muito além da versão original: é, em alguma medida, normalizar um discurso elitista, arrogante e desumanizador. O pedestal que lhe é erguido não está vazio: ele sustenta um tipo de Brasil que insiste em sobreviver.

Talvez o incômodo de Taís Araújo seja mais do que justo: ele é necessário. Quando uma atriz negra, conhecida por sua coerência ética, questiona a idolatria de uma figura cruel, ela não está apenas falando de uma novela antiga. Está nos lembrando que a ficção molda afetos, e afetos moldam escolhas. Se o brasileiro insiste em amar vilãs, talvez seja hora de se perguntar: quem somos, afinal, quando as cortinas se fecham?