
O tribunal que inocenta Tirullipa diante de imagens tão claras, onde ele desamarra a parte superior do biquíni de mulheres sem consentimento, expondo seus corpos em um evento público, em nome de “liberdade artística”, comete um grave equívoco não apenas jurídico, mas civilizatório. É uma decisão que deslegitima o conceito de consentimento, relega mulheres ao estatuto de objetos de diversão artística e envia uma mensagem de impunidade.
O artigo 215-A do Código Penal exige para a configuração de importunação sexual a presença do dolo específico: a intenção de satisfazer desejo lascivo. O juiz, ao absolver Tirullipa sob o argumento de que não ficou demonstrada essa intenção (uma exigência intensa de prova), restaura de fato uma blindagem ao agressor em situações vectorizadas pela desigualdade de gênero. Ao classificar o ato como expressão artística, ignora-se que liberdade de expressão não pode ser absolutizada quando se cruza o limiar da lesão corporal, da afronta à dignidade ou da violência simbólica. A Justiça, desse modo, abdica de sua função protetiva e revive estigmas do patriarcado.
Esse tipo de jurisprudência reforça estruturas de poder pra lá de tortas: mulheres, especialmente em espaços públicos de lazer, continuarão sujeitas à segunda ordem normativa: aquela produzida informalmente pelo medo, pela autocensura, pela expectativa de que “não provoquem” o agressor. Para uma mulher, a decisão desse magistrado é o retrato do colapso da confiança institucional. Quando o Estado deixa de aplicar o Direito penal com coerência, ele mina sua própria autoridade moral e fragiliza o pacto democrático que o instituiu como norma.
No plano simbólico, a sentença é um convite à revitimização simultânea: obriga que mulheres duvidem de suas memórias, refutem os traumas e aceitem uma cultura de objetificação como “atividade artística”. O precedente abre algo perverso: quem tiver poder de palco, fama ou palco midiático, poderá se apropriar de corpos sem retaliação legítima, alardeando que suas invasões são “comédia”, “performance” ou “espontaneidade”. É o Estado acobertando o agressor sob o manto da cultura.
Se algo resta urgente após esse arbítrio, é a reação política, não apenas jurídica, mas legislativa e pedagógica. É imprescindível que o Congresso avance na reforma dos crimes sexuais, reduzindo obstáculos injustificáveis à prova da intenção e reforçando mecanismos de inversão de ônus da prova. Também é essencial que o Poder Judiciário se submeta a revisão de instâncias superiores, pois reverter esse tipo de jurisprudência permissiva é urgente.
A reforma de uma sentença absurda e suspeita dessa, é a única saída moral capaz de reafirmar que nenhum show, nenhum riso, nenhuma “brincadeira” pode sobrepor-se ao sagrado direito de autonomia das mulheres sobre os seus próprios corpos. Após Tirullipa tirar a roupa da mulher sem sua autorização, a sentença chega na segunda parte como um estupro jurídico na vida da vítima, já despida, literalmente, pelas mãos do acusado.