Alessandro Lo-Bianco

A absolvição escandalosa que deu um golpe contra corpos femininos

Ao absolver Tirullipa de um delito que ele mesmo pediu desculpas, juiz abriu jurisprudência danosa para outros casos

Tirulipa assedia influencers na Farofa
Foto: Reprodução/ Instagram
Tirulipa assedia influencers na Farofa
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O tribunal que inocenta Tirullipa diante de imagens tão claras, onde ele desamarra a parte superior do biquíni de mulheres sem consentimento, expondo seus corpos em um evento público, em nome de “liberdade artística”, comete um grave equívoco não apenas jurídico, mas civilizatório. É uma decisão que deslegitima o conceito de consentimento, relega mulheres ao estatuto de objetos de diversão artística e envia uma mensagem de impunidade.

O artigo 215-A do Código Penal exige para a configuração de importunação sexual a presença do dolo específico: a intenção de satisfazer desejo lascivo. O juiz, ao absolver Tirullipa sob o argumento de que não ficou demonstrada essa intenção (uma exigência intensa de prova), restaura de fato uma blindagem ao agressor em situações vectorizadas pela desigualdade de gênero. Ao classificar o ato como expressão artística, ignora-se que liberdade de expressão não pode ser absolutizada quando se cruza o limiar da lesão corporal, da afronta à dignidade ou da violência simbólica. A Justiça, desse modo, abdica de sua função protetiva e revive estigmas do patriarcado.

Esse tipo de jurisprudência reforça estruturas de poder pra lá de tortas: mulheres, especialmente em espaços públicos de lazer, continuarão sujeitas à segunda ordem normativa: aquela produzida informalmente pelo medo, pela autocensura, pela expectativa de que “não provoquem” o agressor. Para uma mulher, a decisão desse magistrado é o retrato  do colapso da confiança institucional. Quando o Estado deixa de aplicar o Direito penal com coerência, ele mina sua própria autoridade moral e fragiliza o pacto democrático que o instituiu como norma.

No plano simbólico, a sentença é um convite à revitimização simultânea: obriga que mulheres duvidem de suas memórias, refutem os traumas e aceitem uma cultura de objetificação como “atividade artística”. O precedente abre algo perverso: quem tiver poder de palco, fama ou palco midiático, poderá se apropriar de corpos sem retaliação legítima, alardeando que suas invasões são “comédia”, “performance” ou “espontaneidade”. É o Estado acobertando o agressor sob o manto da cultura.

Se algo resta urgente após esse arbítrio, é a reação política, não apenas jurídica, mas legislativa e pedagógica. É imprescindível que o Congresso avance na reforma dos crimes sexuais, reduzindo obstáculos injustificáveis à prova da intenção e reforçando mecanismos de inversão de ônus da prova. Também é essencial que o Poder Judiciário se submeta a revisão de instâncias superiores, pois reverter esse tipo de jurisprudência permissiva é urgente.

A reforma de uma sentença absurda e suspeita dessa, é a única saída moral capaz de reafirmar que nenhum show, nenhum riso, nenhuma “brincadeira” pode sobrepor-se ao sagrado direito de autonomia das mulheres sobre os seus próprios corpos. Após Tirullipa tirar a roupa da mulher sem sua autorização, a sentença chega na segunda parte como um estupro jurídico na vida da vítima, já despida, literalmente, pelas mãos do acusado.