
No especial que celebrou os 60 anos da TV Globo, houve luz, festa, memória seletiva e uma ausência ensurdecedora: a de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. A emissora escolheu deliberadamente ignorar a figura que, depois da família Marinho, foi quem mais contribuiu para construir a identidade da Globo como a conhecemos. E mais do que isso — foi o arquiteto do chamado “Padrão Globo de Qualidade”. Ignorar Boni é mais do que uma omissão; é uma mutilação da própria história televisiva não só do canal, mas da televisão brasileira.
Boni não está recluso, não está doente, tampouco indisponível. Lançou recentemente mais um livro, O Lado B do Boni, e segue ativo nos bastidores e no pensamento sobre mídia e televisão, inclusive com vídeos rotineiras em seu instagram. Não havia desculpa plausível para excluí-lo de uma celebração que, se fosse justa, teria no mínimo dedicado um capítulo inteiro à sua figura. Mas a Globo preferiu seguir em frente como se ele nunca tivesse existido, como se seu legado não estivesse entranhado em cada vinheta, cada enquadramento, cada formato consagrado que passou por suas mãos.
A escolha foi ainda mais drástica quando se estendeu ao filho. Boninho, responsável por transformar os realities da emissora em fenômenos culturais, também foi limado do especial. Cabe lembrar que, graças a Boninho, a emissora tem hoje um produto que financia o salário de quase todo o canal o ano inteiro. E, com ele, toda a memória de uma era televisiva recente, marcada por Big Brother Brasil, No Limite, The Voice, Estrelas e tantos outros formatos que mobilizaram milhões de espectadores. A decisão foi tão radical que os realities simplesmente não foram mencionados. Um apagamento simbólico que gritou.
Essa decisão editorial revela mais do que ressentimento. Revela uma tentativa de reescrever a própria história da televisão brasileira. E reescrever história, quando se faz com omissões conscientes, é o mesmo que entrar numa biblioteca e arrancar, uma a uma, as páginas de livros que não agradam. O que sobra depois disso é uma narrativa mutilada, incompleta, desonesta com o próprio passado.
A Globo, ao longo dessas seis décadas, sempre soube celebrar seus marcos. Mas neste caso, trocou o reconhecimento pelo orgulho. Preferiu sacrificar a verdade por conveniência institucional. A imagem transmitida é a de uma emissora que só valoriza os nomes que ainda pode controlar, e não os que já escreveram sua história e agora pensam livremente sobre ela. Foi uma celebração mais preocupada em parecer moderna do que em ser justa.
A maior falha da homenagem aos 60 anos da Globo não está no que foi mostrado, mas no que foi apagado. E esse apagamento não se restringe aos nomes de Boni e Boninho. Ele atinge o próprio compromisso da Globo com sua história. Porque uma emissora que renega seus criadores perde mais do que credibilidade: perde a chance de se reconhecer — e de se reinventar com verdade.