Léo Lins
Reprodução/Youtube Léo Lins
Léo Lins


Passei a noite em claro, roendo uma pergunta que parece simples, mas que guarda uma brutal complexidade moral: é aceitável qualquer conteúdo, desde que haja público para consumi-lo? A repetição desse argumento “mas tem quem goste”, “tem quem pague”, tem servido, com frequência inquietante, como salvo-conduto para produções que, em nome da plateia, desrespeitam, reduzem e violentam em forma de entretenimento. Como se a existência de uma audiência fosse, por si só, a medida do valor de uma ideia ou prática.

Foi então, mergulhado nessa angústia, que me ocorreu uma imagem incômoda, mas didática agora: no Império Romano, multidões se espremiam em arenas para ver seres humanos sendo despedaçados por feras. A plateia vibrava. O espetáculo era consagrado. O sucesso era inegável. A história, no entanto, tratou de dar o veredito que faltava àquela época: aquilo foi barbárie, ainda que lotasse os assentos e arrancasse risadas ou aplausos entusiasmados. A presença da massa nunca foi sinônimo de justiça, e muito menos de civilidade.

O problema está em confundirmos aplauso com legitimidade. Há conteúdos que, embora aplaudidos, são profundamente indignos. Há discursos e formatos que sobrevivem não porque são válidos, mas porque são tolerados. A demanda, por si só, não absolve ninguém. O aplauso, muitas vezes, é apenas o som de um público ainda imerso em valores tortos, anestesiado por séculos de naturalização da violência, da humilhação e da desigualdade travestidas de piada, de espetáculo, de hábito cultural.

Talvez, daqui a algumas décadas, olhemos para certos conteúdos hoje celebrados e sintamos o mesmo espanto que sentimos ao estudar os jogos sangrentos do Coliseu. Talvez seja difícil, no presente, enxergar a brutalidade que se esconde sob o riso fácil ou sob o pretexto da tradição. Mas a história tem o hábito implacável de nos desmascarar, de revelar, com o tempo, aquilo que preferimos não ver quando ainda era popular.

Portanto, se há uma lição a tirar dessa inquietação noturna, é que o fato de existir público nunca foi justificativa para a permanência de uma prática. Já lotamos arenas para ver homens serem mortos. Já erguemos palcos para a humilhação. O que nos cabe agora é decidir se vamos continuar chamando isso de cultura ou se, finalmente, teremos coragem de dar outro nome: crueldade. 

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