Manuela Dias e Taís Araujo
Reprodução/ TV Globo
Manuela Dias e Taís Araujo

A escolha de Thaís Araújo para viver Raquel na nova versão de Vale Tudo nasceu com uma proposta profundamente política. Não se tratava apenas de escalar uma atriz talentosa, mas de inscrever no imaginário brasileiro a imagem de uma mulher preta como símbolo da ética: a força moral que resiste, mesmo quando tudo ao redor se vende. Em um país que ainda luta para enxergar a virtude nas peles escuras, colocar Thaís como a guardiã da integridade era um gesto de reparação e esperança. Raquel, a personagem que sempre acreditou na honestidade como caminho, ganhava finalmente o rosto de quem, historicamente, precisou provar duas vezes seu valor.

Mas o gesto se esvaziou quando a própria atriz ousou questionar a coerência da trama. Thaís Araújo levantou uma crítica legítima: por que uma empresária de sucesso preta voltaria a vender sanduíches na praia, como se o progresso desse esteriótipo devesse sempre ser efêmero? A observação, recebida pelo público como um eco de bom senso, foi interpretada pela autora Manuela Dias, no alto da sua vaidade mimada, como insubordinação. A resposta foi dura e silenciosa: o personagem foi encolhido, empurrado para os cantos da história, como se a ética de uma mulher preta pudesse ser castigada por levantar a voz.

Nos bastidores, o gesto foi entendido por muitos como uma punição: e é exatamente isso que o transforma em símbolo político. Quando uma autora branca apaga, pelas suas próprias mãos, o protagonismo ético de uma mulher preta, o que está em jogo não é apenas vaidade, mas poder. É a tentativa inconsciente de reafirmar que o discurso moral ainda deve vir de quem detém o privilégio, e não de quem o desafia. Manuela aprendeu direitinho com a elite que o poder simbólico é o mais eficaz dos controles: ele define quem pode falar, quem deve calar e quem será lembrado. É o Vale Tudo da vida real.

O resultado é uma novela que, ao negar a representatividade que prometeu, implodiu pelas mãos da autora sua própria relevância histórica. Vale Tudo, na versão de Manuela Dias, não será lembrada: não porque falte talento, mas porque sobrou vaidade. Quando o ego da criadora se sobrepõe ao sentido da obra, o produto cultural se torna frágil, oco, incapaz de dialogar com o seu tempo. A arte que não suporta o questionamento não é arte: é propaganda de si mesma.

Assim, o que começou como uma oportunidade de reescrever o Brasil pela ficção terminou como um retrato cruel da realidade. Uma autora branca, protegida por seus pares, apagou da cena a mulher preta que simbolizava a ética, e com isso, apagou o que havia de mais nobre no espírito da novela. No fim, Vale Tudo se torna o que o país tem sido: um palco em que os donos da voz continuam brancos, decidindo quem pode representar a virtude preta, desde que ela não a questione. E esse, sim, é o verdadeiro escândalo ético que fica dessa trama horrorosa.


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