
“Consegui sair num momento em que tinha só mais 5% de oxigênio. Ou eu usava aqueles 5% ali, ou eu ia morrer.” Foi assim que Mariana deu às palavras o peso de uma sobrevivente, não apenas de um rompimento, mas de uma fuga de vida ou morte. Eu passei por isso. Também estive a beira dos 5% de ar. E por experiência própria, fui absolutamente tocado em lágrimas pelo depoimento da Mariana. Foi como reviver um pesadelo que jamais poderá ser esquecido. Mariana foi exata e com absoluta clareza sobre o ponto de ruptura emocional: quando uma pessoa já foi desgastada a tal ponto que o corpo e a mente não aguentam mais viver.
Esse sentimento de “falta de ar emocional” costuma sinalizar depressão profunda, ansiedade aguda ou esgotamento psicológico. Quando usamos nosso “5% de oxigênio”, isso simboliza os últimos fragmentos de nós mesmos que restavam e a urgência de reagir. O valor desse relato está em tornar palpável algo muitas vezes invisível: o horror psicológico, que que corrói por dentro e mata aos poucos, de forma sádica, fria e cruel.
Mariana afirma: “a violência psicológica não deixa marca visível, mas, olhando para trás, eu consigo ver como ela foi se manifestando: queda de cabelo, olho tremendo, falta de apetite, anorexia.” Esse trecho é poderoso e carregado de significado do ponto de vista da saúde mental, porque sabemos que traumas contínuos como humilhações, manipulações, controle, muitas vezes se manifestam através de sintomas como problemas de sono, transtornos de alimentação, perda de identidade, ansiedade, pânico, alterações no sistema nervoso. Muitas vezes isso é provocado pela tática do 'contato zero', uma ferramenta cruel usada pelo abusador dentro do relacionamento.
Ao nomear essas manifestações físicas, Mariana quebra o estigma de que “violência” só existe se houver marcas externas ou agressão física. Ela dá voz a um tipo de sofrimento que historicamente foi silenciado. Isso importa profundamente: expõe o quanto o abuso emocional pode ser destruidor, invisível para o mundo, e ainda assim fatal para a autoestima, a dignidade e a saúde mental da pessoa. No meu caso, toda essa somatização fez bater a minha porta um mundo preto e branco. Era um presságio pra morte. O alerta final.
Outro ponto forte do depoimento e que muitas vítimas demoram a perceber é a fala sobre o controle: ela relata que ouvia que “nenhuma amizade presta… todas são invejosas… sua família também não presta”, e que o parceiro a afastava de quem a amava. Esse tipo de estratégia é clássico em relacionamentos tóxicos, também vivi isso. Isolamento social, desqualificação da nossa rede de apoio. Nesse momento escutamos que nossa família é louca, o psiquiatra é louco, a terapueta é maluca, e todos querem nosso mal, menos o 'amado'. Psicologicamente, isso corrói a percepção de realidade da pessoa, mina sua autoestima, e cria dependência: não apenas emocional, mas identitária.
Quando Mariana diz que “meu brilho tinha sumido, como se alguém estivesse sugando tudo de mim”, ela descreve o processo de vampirização emocional: o parceiro não busca amor, mas poder, controle, dominação. Isso muitas vezes resulta em uma dissociação da própria identidade: a vítima passa a viver por quem o abusador deseja, não mais por quem ela é. Mas se você acha que isso é tudo, você não tem noção do que é o sofrimento quando chega a manipulação da CULPA, principalmente se você já desabafou com o abusador sobre seus medos, traumas, e vulnerabilidades. Tudo será usado contra você no momento oportuno.
Ela também aborda diretamente a pergunta que muitos fazem: “por que você não sai?” E responde com honestidade: “não é simples você sair, existe ali uma dependência… o problema dessa relação é que ela vai na tua identidade.” Esse argumento revela duas camadas de violência psicológica: primeiro, a dependência emocional e cognitiva cultivada pelo abusador; segundo, o apagamento da subjetividade da vítima. Psicologicamente, essa dependência se manifesta como insegurança, baixa autoestima, sensação de que sem o parceiro a pessoa “não é nada”. E quando o agressor mina todas as referências, como amigos, família, autoestima, a saída deixa de ser apenas uma escolha: torna-se um desafio existencial. O relato de Mariana ilumina como a “liberdade” de deixar o relacionamento só aparece quando a pessoa recobra parte de si mesma, e às vezes, só resta “5%”.
Ao escolher tornar público esse relato por meio de uma campanha do Ministério Público do Rio de Janeiro ela transforma sua dor, nossa dor, numa voz coletiva. Esse gesto tem valor terapêutico, pois não só para ela, que nomeia e valida sua experiência, mas também social: dá visibilidade ao abuso psicológico, contribui para desmistificar a narrativa de que “se não sangrou, não foi violência”. Ao explicar com clareza como o abuso emocional corrói a mente e o corpo, ela fornece um mapa de sinais para quem vive ou já viveu algo parecido. Compartilhar o trauma de forma consciente e articulada pode funcionar como resistência. Em um dos meus livros, 'Ventilando', escrevo: "dentro da minha dor encontrei o remédio, compartilhar..." O pedido de socorro, a rede de apoio, é o primeiro passo para romper o ciclo do silêncio, da culpa, da vergonha.
A “última respiração” de Mariana, ao declarar que escapou é, também, a primeira de muitas e muitos que podem se reconhecer e, quem sabe, encontrar força para respirar de novo.
