
Consagrado pelo público e pela crítica como uma das vozes mais potentes atualmente no rap nacional, o artista Rico Dalasam vem arrastando uma multidão quando sobe aos palcos. Basta começar o show e é possível observar que as composições do rapper versam muito mais para a plateia do que apenas um bom show para assistir. No rosto de cada expectador, é possível sentir um mar de sensações que nasce da identificação que o público experimenta a partir das próprias vivências de Dalasam, tão bem expostas em seus versos.
A ascensão de Rico no cenário artístico foi meteórica. E com ela também veio uma dura rasteira depois do sucesso da música "Todo Dia", realizada em parceria com a cantora Pabllo Vittar. O cantor precisou ingressar na Justiça trabalhista para ter o reconhecimento pelos direitos autorais da sua própria música. Por esse motivo, sofreu um duro golpe quando o público da Pabllo promoveu injustamente um cancelamento contra ele - a ainda o culpou pela retirada da música de todas as plataformas digitais - com uma promoção de ódio irracional. Naquela época, o clipe já atingia mais de 50 milhões de visualizações. Rico teve seu direito reconhecido pela Justiça e a música deve retornar ao streaming em breve.
Depois de passar por um longo período de reclusão com todo esse imbróglio, Rico voltou com um novo álbum arrebatando o público ao falar de alívio depois de períodos de dor. "Dolores Dala Guardião do Alívio" já é considerado pela crítica especializada como um dos melhores trabalhos nacionais no cenário musical. E isso foi constatado de perto pelo repórter da coluna Juan Filder, que assistiu o show do rapper no Circo Voador, no Rio de Janeiro, após realizar a entrevista com o cantor. "Uma imagem vale muito. Acho que essa foto que estamos colocando na matéria expressa bem o que o público hoje sente quando está diante do Rico. As pessoas se identificam e se enxergam cada vez mais em seu trabalho. E é possível ver uma troca entre ele e o público. Há uma troca muito grande entre os dois e uma mensagem clara no meio: que é viver com coragem, estar forte para a vida", pontua Juan Filder. Confira agora essa entrevista exclusiva!
Como foi que a musica entrou na sua vida? E, consequentemente, o rap?
Eu nasci na década de 90, mesmo momento em que o rap tem também um lugar de nascimento na vida das pessoas enquanto cultura e prática na língua portuguesa. Fomos nos moldando juntos. Quando eu era pequeno, sabia alguns raps e isso foi se desenvolvendo em mim. Vieram depois as batalhas, quando comecei a treinar e me entender como poeta. Eu me entendi como poeta bem cedo. Só que depois eu falei: vou gravar minhas coisas porque tinha uma vontade, e isso fez com que o caminho se desenhasse. Nunca tive a intenção, de fato, de ser um rapper ou alguém da música. Já fui da Igreja e todo mundo cantava, eu não. Nunca tive essa coisa de me entender cantando. Eu era muito mais das palavras e das mensagens. Então podemos perceber que a mensagem está muito antes, o poema na minha vida vem muito antes da habilidade para cantar.
Você carrega em suas letras muitas questões pessoais. Como é o seu processo de criação?
Está ligado às coisas que eu preciso dizer, para que eu possa dar um passo novo no trajeto. São coisas que eu organizo para poder dizê-las sem dúvida alguma. É quando eu me organizo para transpor algum obstáculo. Eu observo e analiso aquilo do jeito que eu sei para expor aquilo e escrevo. Quando eu vejo que aquilo tem melodia, aí vira as músicas. Não é uma demanda industrial, mas uma demanda muito pessoal para o meu próprio desenvolvimento.
Você fala nesse novo trabalho sobre um processo de 'desencantamento'. Como é isso?
De 2015 para cá eu descobri que eu poderia desejar coisas, e ver essas coisas se realizarem. Eu descobri que eu podia apontar para algo e aquilo ter um efeito. Eu apontei e lancei palavras e aquilo teve um efeito. Aí eu entendi que isso foi um encanto. Entendi também que para atingir outras dimensões eu precisaria também me mover em direção ao desencanto. Não é porque vc jogou a velha que a nova esta alí. Não é como comprar duas coisas, e quando uma fica velha a gente coloca outra em uso.
Você fala sobre libertação nesse trabalho. Hoje podemos falar que esse Rico que está na minha frente é um novo Rico?
Leia Também
Eu acredito que a novidade, ela está presente na forma como contamos o tempo. Contamos o tempo entre as coisas velhas, as coisas de agora, e as coisas do futuro. A gente chora aqui, tropeça, acha que é o fim, mas as coisas já aconteceram. Tem coisas que são determinadas para acontecer, prosperar, para vingar, aquela ideia de que ninguém morre na véspera, de que as coisas tem seu tempo oportuno, elas acontecem. A gente chora, fica muito emocionado porque nasceu alguém ou porque esta muito apaixonado, ou porque terminou o tempo daquele encontro, e tudo isso vai construindo na gente o tempo que a vida precisa para que as coisas sejam colhidas, para que as coisas agora sejam novamente semeadas, ou para que agora seja o tempo de descansar. Eu acho que me vejo novo a cada vez que eu me deixo morrer. A gente sabe que é cíclico, alguma hora eu vou me ver desgastado outra vez e vou falar: agora é hora de morrer de novo.
Depois de tudo o que você passou, o que você acha mais importante hoje no seu trabalho?
Tecnicamente dá pra atingir os modos de distribuir, os modos de expandir, de multiplicar, com pouco dinheiro você consegue um pouco de mídia para as coisas, aí é um processo. Mas como missão eu preciso estar resguardado e preocupado em fazer aquilo ter sentido, trazer o que não dá pra inventar, não dá para comprar nem para montar. Tem coisas que nem mesmo a indústria, as tecnologias, as máquinas conseguem nos trazer, que são coisas de outra ordem, que a gente aqui no modo terreno não tem tanta explicação, que a gente chama como algo além do natural. O fantástico natural. Eu ando preocupado com isso, aí eu fico atento para que esse fantástico natural me encontre, e a gente tenha coisas fantásticas para compartilhar com as pessoas. Eu me preocupo com isso agora, mas não pude me preocupar em outros momentos porque eu também sou músico independente. Eu tive que fazer cinco, seis coisas que não é musica para ver meu som chegar nas pessoas. A gente, que faz música independente, muitas vezes fazemos coisas que não necessariamente é música, só para ver chegar sua cara, seu nome, seu jeito, o que você tem para passar. E aí com o tempo você consegue encontrar outras pessoas. E quando você perceber, você está desenhando a sua missão, você não está mais sendo distraído por outros afazeres que foram necessários anteriormente. Talvez eu esteja caminhando para esse lugar onde, em algum momento, eu vou conseguir ver as coisas todas acontecendo no seu ritmo, na sua saúde. E nesse momento eu estarei apenas preocupado em fazer o meu caminho e encontrar o fantástico natural.
Em 2017 você passou por um momento bem difícil, quando precisou recorrer a Justiça para ter seu direito autoral da canção “Todo Dia” - feat com a Pabllo Vittar - reconhecido. Como foi enfrentar tudo aquilo?
Existem escritos que, ao longo do tempo da nossa história, eles vão sendo designados para pessoas especificas como eu. Mas também existem encantados, existem pessoas como eu, inclusive que se movem para acabar com esse imaginário de mundo com essas práticas e com esse jeito, como as coisas são postas. Até você achar um êxito em um processo, ele acaba saindo caro, e acaba tirando um pouco de vida, porque de fato ali não é o reino de um mundo que se quer pespetuar, uma prática violenta e maldosa. Mas a gente esta sempre atendo porque a todo momento a gente está suscetível a viver algum tipo de violência, porque a todo tempo isso está sendo perpetuado, alguém repetindo e monumentando que a gente não merece ser humanizado, não merece sermos entendidos como humanos, como pessoas portadoras de humanidade. Quantas pessoas não ficaram com medo de confrontar uma estrutura porque falaram: "pô mano, o Rico balançou lá." Porque planta na gente uma cisma, uma insegurança, um medo, um deixa pra lá, e aí eles vão fazendo a manutenção desse tipo de coisa que vai se perpetuando.
Como foi para você o julgamento das pessoas, por algo que elas nem ao menos entendiam de fato do que se tratava? Isso tocou muito você, e até fez você parar por um tempo e pensar em abandonar a música...
A gente é jovem e quer ter as coisas. E a gente vê o caminho, mas acaba se distraindo... Cálculos específicos não estão na visão de um mundo extremamente maldoso, não estão aptos a acessar esse lugar... E aí quando você observa, tá muito mais apanhando do que vencendo para conquistar algo que as pessoas conquistam - muitas vezes - com nenhum esforço. Mas o que vale desse processo é a gente conseguir visualizar os efeitos do tempo sobre as coisas... O tempo de prática de ausência, que foi algo que eu tomei como necessário para mim, porque ao mesmo tempo que eu estou chamando de pratica de ausência, em algum lugar ficou uma coisa meio 'por que o Rico morreu? O Rico ficou no caminho, o Rico morreu na praia', enquanto para gente foi fundamental esse tempo. Não existiria, por exemplo, o Guardião do Alívio se a gente não parasse para olhar as coisas, se a gente ficasse falando naquele momento em colocar outro hit, botar outro carnaval, nada viria... O esgotamento artístico acabaria vindo, porque grande parte das coisas está fadada a isso quando estão nesse processo maquinário. Hoje eu não trocaria de maneira nenhuma tudo o que foi vivido, e o processo que me fez chegar nessas canções. Quando eu estava chegando nesse show tinham pessoas chorando, agradecendo, eu vou fazer o que? Eu estou bem, eu estou vivo! Vivo artisticamente! Estou vivo em outras coisas. Grana a gente recupera. O tempo, ele tem suas maneiras de acelerar os processos de colheita quando ele deseja, chove mais vezes naquele mesmo lugar, bate mais sol naquele lugar, e o que você demoraria um tempo para colher o tempo mesmo providenciou que você colhesse antes. Existe a hora para se ausentar, para descansar, a hora de empenhar tudo, a hora de botar fogo em tudo, inclusive nas pontes. E as coisas vão se regendo e o tempo vai mostrando a história. Alguém aí está escrevendo a história. A história está sempre sendo escrita... Ou pelo caçador, ou pelo leão.
Que mensagem você deixa para os nossos leitores?
Todas as vezes que eu quero dizer algo para alguém que eu não conheço, ainda é que a melhor versão de nós nunca foi na agonia, na confusão dos ódios, na distração dos brancos. Acho que isso vale para o primeiro dia do Brasil e para hoje. Acho que essa mensagem é sempre válida para gente recobrar o que a gente é, retomar a rota, recalcular nossos processos. E quando a gente observar, que a gente esteja em um lugar de um pouco mais de alívio, um pouco menos agoniado com o que está sendo posto para a gente, para confundir e distrair e deixar a gente abatido.
Confira o vídeo da entrevista feita pelo repórter da coluna Juan Filder.